✂️ Corte de financiamento internacional afeta a comunicação periférica
Contratos cancelados e redução de investimento fragilizam mídia popular - e um caminho é se voltar para o Brasil.
O cenário global vem mudando — e a comunicação popular e o jornalismo independente no Brasil estão sentindo o impacto. De acordo com um levantamento da Repórteres Sem Fronteiras, a decisão de desativar a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) congelou US$ 268,38 milhões em financiamentos ao jornalismo globalmente em 2025. Já a Ajor, a Associação de Jornalismo Digital, levantou que mais de dez organizações jornalísticas brasileiras tiveram contratos cancelados ou projetos interrompidos, com perdas estimadas em cerca de U$230 mil — além de outros projetos em fase de contratação que somam mais U$200 mil em risco.
A Énews ouviu uma pessoa da direção de uma organização de comunicação que viu o financiamento de um projeto cancelado, com o fim da USAID. Ela não quer se identificar por medo de represálias, já que as tratativas com o governo dos Estados Unidos ainda não foram encerradas.
O público do projeto era de jovens periféricos, com foco de trabalho na comunicação sobre a crise climática (esse inclusive foi o perfil dos projetos afetados no Brasil, de acordo com a Ajor). Vinte dias após a posse do presidente dos EUA, Donald Trump, a equipe recebeu um e-mail pedindo a paralisação do projeto até segunda análise.
“Pouquíssimos dias depois, fomos informados que o projeto estava terminado, para aguardarmos informações de como proceder. Veio um contrato de cancelamento, com justificativas bizarras.”
O contrato apontava que o projeto era contra as prioridades da gestão, entre elas a de proteger a população estadunidense contra invasões e defender as mulheres do extremismo da ideologia de gênero e restaurar a verdade biológica no governo federal. A organização vai precisar devolver o dinheiro, mas não há informações sobre como essa devolução será feita, se será em dólar ou real, qual o câmbio a ser considerado, entre outros detalhes.
“Pegou muito a saúde mental da equipe, parecia que estávamos fazendo algo errado. Somos uma organização pequena tendo que lidar com o governo dos Estados Unidos. Foi nosso primeiro financiamento internacional, aprendemos bastante e vamos usar esse aprendizado pra ir atrás de outros caminhos de financiamento.”
Segundo análise de Carolina Oms, diretora de Sustentabilidade e Comunicação do Fundo de Apoio ao Jornalismo (FAJ), “este recuo da filantropia internacional afeta diretamente projetos jornalísticos que dependem desses recursos para operar em regiões periféricas e vulneráveis”.
Ela observa que essa dependência torna o campo ainda mais vulnerável em um momento em que as prioridades geopolíticas mudam — conflitos como os da Ucrânia e do Oriente Médio têm redirecionado recursos que antes eram voltados para a América Latina. A filantropia americana volta seus recursos para questões internas e esse movimento é acompanhado por muitos países doadores, o que reduz orçamentos de cooperação internacional.
Carolina também aponta que “o impacto é mais severo para veículos que cobrem temas como questões ambientais, direitos humanos e transparência pública, que tradicionalmente recebem mais ataques e menos acesso a recursos privados”. Vale ler o relatório produzido pelo FAJ para um mergulho nesse tema.
E esse vazio de recursos não é só um problema de sustentabilidade: é um risco direto à democracia. “Esse corte abrupto de financiamento evidencia a vulnerabilidade estrutural do setor, já destacada em alertas internacionais como o da carta recente do GFMD (Fórum Global para o Desenvolvimento da Mídia), que aponta o enfraquecimento da mídia independente como uma ameaça à democracia, aos direitos humanos e ao desenvolvimento sustentável”, comenta Maia Fortes, diretora-executiva da Ajor. “Frente a esse cenário, Ajor tem buscado não apenas apoio jurídico emergencial às organizações afetadas, mas também articulações internacionais para mitigar o impacto desse ‘fechamento de torneiras’ que compromete a resiliência e a pluralidade do jornalismo no país.”
Para Douglas Calixto, doutor em comunicação e professor de Linguagens no Mackenzie, que atuou como Consultor Sênior de Comunicação da Porticus, ainda existe também um movimento a ser feito no campo da filantropia nacional e internacional em direção à compreensão da importância da comunicação para mobilização social e manutenção da democracia.
“Os cortes têm a ver com a ascensão da extrema direita ao redor do mundo, que é um campo ideológico que não reconhece a filantropia como algo de valor, e tem os direitos e garantias fundamentais como algo descartável.”
Ele aponta que, em paralelo a esse movimento da extrema direita, no campo progressista ou liberal, “a comunicação precisa deixar de ser vista pela filantropia como um trabalho de divulgação. Precisa passar a configurar algo estratégico, que mobiliza as bases, que faz parte da democracia do cotidiano. Acho que a filantropia ainda não entendeu isso.”
O próprio Fundo de Apoio ao Jornalismo (FAJ) “precisa de engajamento significativo do setor privado brasileiro e da sociedade civil para atingir a escala necessária para compensar a redução dos investimentos internacionais”, como ressalta Carolina.
Énois tem atuado para sensibilizar novos financiadores sobre a importância da comunicação periférica para fortalecer o bem viver. No 13º Congresso GIFE (Grupo de Investidores Sociais do Brasil), que vai acontecer entre 7 e 9 de maio, iremos com uma missão urgente: pautar o financiamento nacional à comunicação popular, feita em territórios periféricos, como estratégia central de redução das desigualdades.
Estamos levando para o centro do debate aquilo que muitas vezes é deixado à margem — a comunicação feita por, com e para as comunidades. Queremos abrir essa roda com fundações, investidores, sociedade civil e setor público: quem vai garantir que a informação continue sendo um bem público acessível a todes?
Nonada inaugura sua primeira sede após 15 anos de trajetória
O Nonada Jornalismo, parceiro da Rede Énois, alcançou um marco importante: abriu sua primeira sede própria. Após 15 anos de atuação — desde os tempos de coletivo até se tornar uma organização sem fins lucrativos —, a equipe agora conta com um espaço de trabalho que também abriga seu acervo histórico.
A conquista é fruto do amadurecimento institucional e da organização financeira. “Ter uma sede sempre foi um sonho. Aos poucos, entendemos sua importância e conseguimos concretizá-lo com apoio de um parceiro que oferece salas a coletivos culturais por um valor acessível, com luz e aluguel inclusos”, conta a equipe.
A dica que deixam: buscar alternativas fora dos caminhos tradicionais. Espaços independentes e alternativos podem ser grandes aliados para quem quer firmar presença física no território.
Com quem estamos falando?
No dia 24/03, estivemos no evento “Mulheres no Jornalismo”, que reuniu iniciativas com foco em gênero para mesas e oficinas temáticas. O encontro marcou o lançamento do relatório “Jornalismo na era do #MeToo”, do Repórteres Sem Fronteiras, em um espaço de escuta e troca.
Mas um dado nos atravessou: a ausência quase total de homens cis no debate sobre violência contra mulheres no jornalismo. Dos poucos presentes, um era representante do RSF e outro, captador de imagens. Havia também um homem trans e apenas uma mulher trans.
Ou seja, seguimos falando entre mulheres que já reconhecem os impactos da desigualdade nas redações. Afinal, com quem estamos falando e com quem devemos falar para efetivar mudanças? Refletir sobre quem está ausente também é parte da mudança que queremos ver.
Saiba mais sobre a Énois, um laboratório de comunicação que apoia coletivos nascentes nas periferias para fortalecer o bem viver por meio da informação comunitária.
Envie a Énews para alguém que pode se interessar. E fale com a gente no contato@enois.org